quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Insônia

A alma coberta por absurdos negros
Ida na noite em direção à janela
Aberta do desejo
Todo delírio da cura tua pra dor antiga
mas nada atenua e só fadiga
a alma que deixo,
que abandono
me irrita
nunca perfeito, sou nunca perfeito
sou só no seu peito, madrugada
deixa que a lua abençoe os deuses,
minha amada
somos nada, por nada
sou boca, dor armada
armas de fogo apontadas pro caos
que mais dizer que não
Adeus...
Nesse meio azul perco-me de meu Deus
Peço pra me acharem na folia
ao final da madrugada
que se extinguia
como o fogo em meu coração
na noite que se ia em vão
Deixo-me perdido, nu, despido
confidencio à livre penitência
como que incorporando por ato de auxílio
perco-me na confidência
O amor da juventude que te dei
À sorte, pura sorte, me joguei
Teus braços, meu insensato sabor
Melhor dizer não ao amor
E continuar à noite, na morte nua
De cada amanhã
Tentar manter a lembrança, mais nada
Pra não morrer de amor
Hei de esquecer a coisa amada

Fabiano Martins

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Os Campos

Segundo
O das Quinas


Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Mão

Ah! minha mão que não quer machucar...
o que há de errado, mão,
por que não te pões de punho cerrado
a querer trucidar?
Pois se te espero mover,
apenas escreves,
digitas, sei lá...
Por que não estrangulas, esganas, matas
ou feres para que assim eu possa
Ganhar?
Oh, minha mão pacífica
ocupada em acariciar
Por que não feres, machucas, matas
para que assim eu consiga um lugar?
Por que não te ocupas em montar armas,
em vestir luvas,
ou usar facas?
Por que preferes o friso da pena
do que a sentença que executa
o fim da vida de outrem?
Por que não te pões a pingar cicuta
ao invés de ter em permuta
a honra de nada lograr?

Pois à mão
não soma nada
De unhas cortadas
não pode arranhar
E por ser estreito o caminho em seus meios
quer ter por recheio
a maciez de um seio para apertar
Fazer curar a lágrima
que escorre e
recorre em querer magoar
Alisar cochas morenas, lábios rosados
e outras mãos que lhe ofertem o pouco
que em tudo há de ficar.


Fabiano Martins.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Resíduo

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade.

Sirena

Ontem, o sol tardio das cinco horas brilhou em mim
Minha cabeça caída de lado, voltava aos iguais fatos do passado
vamos caminhar, disse
e comigo mesmo fui
e mesmo comigo, dancei
e dancei

e só de madrugada acordei
estando por aí quieto e esperançoso da vida
via teus olhos de outrora na minha cortina
na minha cortiça
Teus olhos sós
Em pensar em nós: de vira-latas a atores
da aristocracia aos estivadores
no cais, nos pais, no país
e os legados da nossa juventude
vinham dar bandeira
a outros que sem pátria
repatriavam-se
por assim dizer
em mim e em você
somos dois
e dois apartados seres
somos dos
sonhos
e dos bendizeres
Estando apenas um pouco distantes
das lendas, sirenas
dos dias


Fabiano Martins

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Desterrados

Onde moram
os desterrados
já sem pena
por morar
Aonde oram, os
excomungados
que da hóstia
se porão a jejuar
Quando e onde
porque e porém
Foz que traz à tona
voz
que fala a ninguém
Exala o mesmo cheiro
de curtume
que em teu quintal haverá
como resquício dos velhos
costumes
que põe os irmãos
a se apartar
"Me dê a mão", ela dirá
"enfrente o mundo, pois a pouco eu o vi acabar"
E como o carro em chamas
na avenida com nome Brasil
há de haver ordem plana
para o inferno fazer-se em tom viril
dos chamados sem terra e direito
a quem nunca irei defender
Tampouco posso acusar
A quem é negado o pão
é dado o perdão pelo sétimo mandamento
derramar
A dor dos outros, que te vale?
Isso é inoperância
fechar os olhos e desejar morte a tudo
é tudo o que pode prover a ignorância
E mais, deve-se pensar sem valer aparência
desejar que tudo exploda
é querer ter pra si esta falência,
pois na ciência não se explica
não é resignação
É modo novo de ver o mundo
é fazer valer a palavra irmão.


Fabiano Martins

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Falenas

Ver é ter nos olhos
Como ser o beijo em que me molho
É andar na relva resguardada da sua língua
Sentir é ter na pele
e na cabeça consentir o toque
Grafia são teus escritos
guardados feito fotos
Meus são os seus
e no futuro hão de sempre ser nossos
Mas teus vinte não andaram por mim
e eu já vi
não vivi nem sinal
do seu amadurecer
Sei que dar adeus de tempo em tempo
é condição para se perder
Lembrar é ser lá dentro
como o cheiro que exala relembra
vendo as borboletas da cidade
hei de lhes dizer:
Voai, Falenas!

Fabiano Martins

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Ode à Alegria

Ó, amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
E mais alegre!

Alegria, formosa centelha divina,
Filha do Elíseo,
Ébrios de fogo entramos
Em teu santuário celeste!
Tua magia volta a unir
O que o costume rigorosamente dividiu.
Todos os homens se irmanam
Ali onde teu doce vôo se detém.

Quem já conseguiu o maior tesouro
De ser o amigo de um amigo,
Quem já conquistou uma mulher amável
Rejubile-se conosco!
Sim, mesmo se alguém conquistar apenas uma alma,
Uma única em todo o mundo.
Mas aquele que falhou nisso
Que fique chorando sozinho!

Alegria bebem todos os seres
No seio da Natureza:
Todos os bons, todos os maus,
Seguem seu rastro de rosas.
Ela nos deu beijos e vinho e
Um amigo leal até a morte;
Deu força para a vida aos mais humildes
E ao querubim que se ergue diante de Deus!

Alegremente, como seus sóis voem
Através do esplêndido espaço celeste
Se expressem, irmãos, em seus caminhos,
Alegremente como o herói diante da vitória.

Abracem-se milhões!
Enviem este beijo para todo o mundo!
Irmãos, além do céu estrelado
Mora um Pai Amado.
Milhões se deprimem diante Dele?
Mundo, você percebe seu Criador?
Procure-o mais acima do Céu estrelado!
Sobre as estrelas onde Ele mora!


Johann Christoph Friedrich von Schiller

sábado, 13 de novembro de 2010

Não dizer Não

Se quiser falar de amor
venha andar de madrugada
quando o peito encerra a dor
e vê a lua engajada

É no céu que vejo o teu suplício
como um choro à porta do hospício
com um grito engasgado querendo sair,
que tem verdade, tem pureza, mas que pode não vir
E assim, seguir engasgando
esperando pelo momento do ataque
Para enfim desterrar a esperança
e desferrolhar-se em válvulas de escape

Venha andar a pé
num caminho que difere ao que escolheu
sou humano e por vezes me defino:
tornei-me homem, mas não sou só eu

Quem quiser se transtonar
deve querer a si
tudo explicar
Nego isto. Já é passado...
posso agora me acalmar

Amanhã e depois
colho o logro que sobrou.
Em ser do tempo o que é fugaz
me ocupo
em ser da obra o escritor

Sei que de desejo posso morrer
mas que não seja em sofreguidão
posto que a vida são só dois dias
já me demoro a não dizer não


Fabiano Martins

Infinito

Verdade é consequência
Tempo paciência
Em resumo
todos queremos aparecer
ser mais
em resumo
todos queremos paz
e mais
e deste modo
vamos juntos nos perder
junto à indiferença ocasional
a parca dor
de se envolver
nas cenas humilhantes
com os nossos semelhantes
Por isso
hei de me perder
e na perdição encontrar
lugar
Olha, meu bem, o infinito
é lá onde eu quero morar

Fabiano Martins

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Aprender

Com a mesma sensação
do jovem Raskólnikov
com o evangelho na mão
com a exata compreensão
de que os crimes não são em vão
Com o mesmo ímpeto
on the road
para ir pra onde quiser
Com a mesma vontade
de fazer da Tristessa
sua mulher
Um jovem nômade
pôs-se a não se publicar
a guardar para si
os romances inverossímeis
que produzia
em contra partida a tudo que lera
e ouvira
Tinha o mesmo desejo
de Rodka
com a machadinha na mão
Queria se apaixonar por quem vende o corpo
sem nunca ter comprado nada para si
sem nunca ter provado
o humano elixir
Para assim apenas coexistir

Desejava o que lhe pulsava
tal qual Napoleão na Rússia
tal qual a sofreguidão de Bismark na Prússia
ou de Sun Tzu ao amanhecer
Ter o sol pela metade,
é saber parte da verdade e preferir não dizer
É conhecer o caminho mais difícil
onde não lhe açoite o medo de morrer,
Fechar os olhos é impossível,
mas talvez a única opção
posto que a condição humana é dura
tudo está cirscunspecção
Posto que não te queres matar
e disso tudo mais,
sobrará para quem amou a vida livremente
um dia, como Svidrigáilov, subitamente
a deixar para trás

Mas não se assuma mau assim
Pois o trem de raul
toma lugar enfim
e para sempre nos leva
afinando ouvidos
levando reservas
Assente calmo a visão que lhe dá
- Pode ser o lusco-fusco fugaz
o que na vida lhe dará lugar -
O que a ti caberá será
apenas escolher

O ego em gigantismo dos homens
ou a mais pura humildade
no gesto que farão os olhos
quando, por um instante, nos pusermos
a ver e querer


Fabiano Martins

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pra mim, chega!

"Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar"

Torquato Neto

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Vida

Arfante
avante
em frente
pra cima
reto
pra baixo
direto
assim
Homem
criança
em mim


Fabiano Martins

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A Notícia da Morte da Mãe: Dois Irmãos

Ao ouvir a notícia
um deu de ombros
o outro se ajoelhou
e palidamente
depois deste torpor
o frio acalentou a um a idéia fixa
ao outro apenas esfriou
A lágrima molhava a face de um
enquanto no outro
nada existia de constipação
A um pouco demorou para que nada mais importasse
ao outro nada importava mesmo antes disto
A um o dissídio fez suplicar a misericórdia de Deus
ao outro fez lhe aumentar o sentimento ateu
A um o contemplar era magnânimo
ao outro nada
nada


Fabiano Martins

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Tergiversar

Tergiversastes à sua dor
saiu à noite
a procura
do que em si
deixou
Valeu-se do bom corpo
Tanto
que lhe fizeram adorno
Valeu-se do que tinha
à mão para lutar
Tergiversou à sua dor
mas desconhece o próprio lugar
Lúgubre é
seu caminhar
por si mesma
um dia vai acabar
por si mesma
em mim mesmo
mesmo eu
sozinho neste lugar
te olhando tergiversar
aviso
nada mais há para assistir
nada mais há para morar
A veia usurpada está
não lhe corre sangue
não lhe ocorre nada
em nada habitará
Havia chegado cedo
tentou se esquivar
já era meio dia
e continuava no mesmo lugar
"Não!" eu lhe gritei
Não vá por ali caminhar
o perigo é atrativo e luxuoso
mas o lixo é real e sinuoso
se encontra mais fácil em qualquer lugar
"Não!" eu gritei ao te ver partir
Depois: "Vá pra onde desejar"
disse eu a mim mesmo,
perdendo-me no encontro dos olhos
sucumbindo ao fio de quem não sabe amar


Fabiano Martins

Para Fiódor

"É preciso atentar
para o lado de dentro da construção
o lado interno escondido
por dentro de sua fundação
é preciso olhar a cidade
e compreendê-la de tal forma
que não fique nenhuma dúvida
quanto ao inexorável presente na sua história"

Parafraseou o ser presente em si
Evidenciou existência vaga
Brilhou incandescente à luz da cadente estrela
fez sorrir e corar a mulher com a alma verdadeira
Vendeu-lhe um sonho
se encaminhou
engendrou qualquer esquema
tratou de seu problema
odiou a humanidade
e ainda mais
a amou de verdade
Esteve à noite febril
sem conforto
esteve cego, surdo, quase violentamente morto
aprendeu a não confiar
e a sempre ver a cidade
a olhava com olhos diferentes
ensinou que o homem é homem
devido à sua complexidade
e perplexo
abriu um sorriso a si mesmo
"é hora
é preciso, vamos!
tente compreender
se o absurdo pode ser plausível
o indelével também há de derreter
Mas que não seja em suas mãos
posto que se conclama
Não procurar demais o vício
é o difícil fim pra quem ama"

"Olhe de perto a cidade
e lembre da casa dos mortos
cemitério é toda ela de verdade
é possível, se olhar bem,
ver seu corpo"

"Esta é uma apenas
mas poderia ser todas por inteiro
o fim da cidade é ser do homem,
mas, por vezes, ela
engole seus mineiros
Ao que o resgate se demora
e depois da hora
aparece na inexatidão pronlogada
Mais ou menos como a vida faz:
A noite inteira amanhecer
para enfim, fugaz
acordar de madrugada"


Fabiano Martins

Ouro de Tolo

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar um Corcel 73
Eu devia estar alegre e satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa
Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa
Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto: E daí?
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado
Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família ao Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos
Ah! Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco praia, carro, jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco
É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa dez por cento de sua
Cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está constribuindo com sua parte
Para o belo quadro social
Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador

Raul Seixas

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Parto

Parto do meu princípio
parto em meu início
morro no meu fictício fato de precisar o impreciso

Morto, os olhos aquém, brilham

Vôo no novo aflito do olho que anda
por caminhos convictos

Não me oponho, me suponho
Me acanho e, posto, triste em fotografia,
me espalho aos deixes-de-lado desta monotonia
Minha condição é propícia ao palavrear, apóia as minhas mãos
sobre o teu paladar,
e daqui, para sempre, caço caminho feito, feitio e presente

Condecoro-me em palavras sutis
Faço esboços em entranhas e párias desta pátria que me pariu
e me criou, e por mim andou,
E em mim deixou marcas

São olhos vermelhos e óleos essenciais
Massageiam-me a alma para nunca mais
Lembra os anos passados, as gotas de sangue e de orvalho
Orvalharam minha fera, minha vida que se desterra

Deixo, contudo, uma prece, um súbito da coerência
Quis dar a mim mesmo papel e tirar-te à noite com certa opulência
Acalentei-me nos braços, madrugada que foi daqui até entre os iguais
Aterrou com terra batida, pedras e sufocou meus matagais



Fabiano Martins

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Para o relógio andar

De trabalhar tanto
o dia fez-se noite
e neste pernoite silencioso
podemos tocar o barulho do obsequioso
e assustador
palor que traz a falta de ruídos

Nos meus sentidos
propagava-se atenção
Locais fora de órbita
sinais sem distinção

Mas pode ser que de repente
o drama todo se resolva
e de uma hora para outra
a massa desande a dar bolo e não pare mais

e o prometido tempo
(já prometido há algum tempo atrás)
se faça presente de súbito
com seu olhar latente
e suas perguntas subsequentes
Em forma de gente
pra dizer: "Não disse?"

"Disse, tempo, disse..."
é a resposta que darei, e continuarei:
"mas o que podia eu
senão afirmar que era impossível.
Naquele momento, tempo, eu não te via..."

E da cadeira do escritório,
olhando pra janela
Meu dia, minha hora, meu óleo
Minha caminhada para chegar na frente,
Tudo o que quer dizer a vida
de repente
dá leve impressão,
mesmo que com imprecisão,
De que o tempo estará certo
quando ressurreto
aparecer em minha frente
pra dizer que tinha dito

e tinha razão

Fabiano Martins

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Cetim

Cetim
que amotina
o meu coração

Confins
desprendidos
desmensurados
ouvidos
aos brados
fartos
neste quinhão

Não me conheço

Sei da boca seca
do lábio ressequido
e da língua úmida
sei de mim

de ver os montes longes
ininterruptos,
enfim,
mas não sou de saber mais
Bem mais
me encontro
longe
nesta página virada
relembrada pelo fim

Sou fogo transcendido
verde que fito
ansioso
de ver perdido
de novo
coração
que dá sinal de estar
fora do jogo
logo
o logro
queime
tão longe
se resenhe
a tempestade
que
em pedido
findará.

Fabiano Martins

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Demais

Guardava a lingua na boca
e quando ela finalmente aparecia
estava vermelha
olhos ferinos
cuspia
virava-se
Olhos notívagos
discrepantes
cansados
Olhos de lembrar
um amor do passado
tirava a língua da boca e cada vez que tossia
manchava o pano
em suas mãos
nos termos dados, escondidos,
nos amores assaz renegados,
nas juras de ódio, no cais interno
ferido
para que fossem feitas diretrizes corretas
para que o amor
fosse visto em tons de violeta
e na roleta russa
do tempo
atentar contra a própria vida
manchada de vermelho
feito a sua língua
De tanto fumar cigarros,
o bem dos sorrisos tornou-se passado
de tanto fumar cigarros o pulmão
passivo
se viu
achatado
cinza
poluído,
amor demais, feito o vício
acata ordens insanas
nos divide, nos mata,
nos engana.

Fabiano Martins

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Chega de falar de mim

Por tantos amares, promessas, embrenhei meus cabelos
por tantos seios, flores, que suguei botões
e borderões abandonados à esmo no fim de um caso
Por cada jura e promessa sincera que tive e que fiz
pelas situações constrangedoras que passei
e julguei ser melhor passar por elas
E tudo mais que tive proveniente do coração
veio a vida me dar a mão e me dizer
que tudo vai
O rio corre e o inverno chegará novamente ano que vem
O calor é questão de tempo
e o furor da paixão vai consentir felicidade no momento certo
Não se pode querer além do que se quer
e nem se ter mais do que se tem
a facilidade de aceitar que o amor acaba
é a mesma de saber que a morte nos assaltará qualquer dia
e disso vivo me queixando
e nisso vivo os mesmos erros
ciúmes, delitos, sobriedade e exagero
humano como qualquer
pessoa
infindável nas minhas complicações,
mas chega de falar de mim.

Fabiano Martins

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Reservas

De que vale a palavra errante
esta voz soluçante
este resto de amor
De que vale a voz que soa rouca
que se perde pela boca
e espalha-se pelo chão
Aonde há, que não dentro do nosso coração,
razão para abandonar
o abandono inevitável
de tudo
Aonde há validade maior, que não
nas olheiras escondidas,
no sono contínuo,
nas reservas dos dias e das horas
O que sobrará do meu tipo calado
quando, por um caminho enveredado,
saltar do pier deste presente regado
feito chuva do céu?
Andemos, pois, fechados
sem nos dar demasiado
e atestemos vida enfadonha e tranquila
Porém, desaprovemos o amor
que envergonha
que nos atira expostos a outros rostos
à frente, atrás, de onde nunca estivemos
Este amor que comprova-nos humanos
esguios, tremulantes, vazios
extremos a todas as horas,
deixemos, pois, este amor doentio lá
fora
e embora o arrepio seja inevitável,
cala-te e observas o fim derradeiro de todas
as tuas reservas

Fabiano Martins

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A palo seco

Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo, eu me desesperava

Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português

Tenho 25 anos de sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força desse destino
O tango argentino me vai bem melhor que o blues

Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Eu quero que esse canto torto
Feito faca corte a carne de vocês

Belchior

sábado, 13 de março de 2010

O experiente

- Ah, leva os meus sonhos, mundo
Ah, leva...
Porque de nada vale esse pessimismo feliz
De nada vale esse dinamismo sem fim
De nada.
Obrigado, tempo.
Ah vai, leva tudo de mim
Minha saúde
Minha inocência
Minhas verdades absolutas
Resoluta, oh tempo, o meu caminhar
Serio
Livre de fantasias
Fosco
Nubla os embaraços causados pela inexperiência
Brinda em mim o pior do mundo e me faz engajar o pensamento comum
Porque assim é que deve ser
Porque o peso se torna mais suportável
E as lágrimas secas fazem-me aguentar melhor o egoísmo
E a falsidade
Leva na minha idade o que poderia ter sido de mim e aquilo que me tornaria
Se tivesse dado asas a tudo o que venho agora negligenciar
Ah, vai tempo
Que faz dos homens sua comida
Leva de súbito, mudo, a minha vida.


Fabiano Martins

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Verdade que traz a chuva

De noite, quando fico ansioso
E os pingos batem na minha fachada
Sinto o frescor de um banho gratuito
No lugar onde faço morada

Meu intuito é perdurar infinito
E por isso me cerco em manutenção
As noites de chuvas são as melhores
Quando o tempo traz o verão

O clima é chato e ocioso
Os carros passam para sempre
A rua segreda seu povo
Que nela, entre eles, passa rente

Molhado o mendigo me erra
Sai andando sem direção
Deseja um carinho, um afago
Um cigarro, um pedaço de pão

Um trago da chuva da noite
Ou na água ardente que muito lhe açoite
E lhe permita encontrar um lugar

O caminho é feito de espinho
E como o mendigo
Me ponho a andar


Fabiano Martins

Todos os dias

Moro na minha juventude
Quieto.
Ainda assim
Porque escolhi o que queria ser
E fui até o fim

Pois não há mal em ser triste
Pra mim ainda não chegou.
Preto no branco
No brando
Tal qual o olhar do trovador

Porque não me entende a palavra seca
Caem as linhas, por assim dizer,
Rimar não é poesia
Eu tento explicar a você

Rimar é apenas estilo
Difere daquilo que escolhi
Entenda, prefiro um gosto amargo
Do que um doce que possa não vir

Fabiano Martins

Dente no dente

Sim, não
Mas pode ser que seja de repente
A minha frente, bem na tua frente
Tudo muito rente, quente
Sente o drama
É tudo ser assim tão envolvente amor
É tudo ser assim tão de repente tente agora
Olho no olho, dente no dente
Lentamente, é nesse hora a hora
Que eu desejo o fim do fim de tudo
É no começo, e o sol poente
A coisa fria e o fogo novamente
E tudo não mais que de repente
Quente, quente, quente
Sente

Torquato Neto e Jards Macalé

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Entender

Te endendo bem
quando pega minha mão e se derrama
quando abraça meu peito e me morde
quando no calor da noite me chama

Te entendo bem quando não diz tudo
quando cala e observa apenas
quando lembra dos dizeres dos livros que leu
e ao meu ouvido declama sua poesia

Te entendo bem quando some
e conspurca nosso nome
nosso amor maculado

Te entendo bem quando volta
dizendo que me quer mal humorado
e que me odeia
e que se pudesse rateava a minha vida
pra que assim de ninguém mais eu fosse

Te endendo bem quando diz que me ama
mas te entendo melhor na cama
com o teu crepúsculo
com o teu choro
com o teu músculo apartado de dor e de prazer

Te entendo tudo que quer dizer mesmo que não diga
e sou teu além do que poderia
porque posso não ser



Fabiano Martins

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010




PESSOAL INTRANSFERÍVEL

"escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso. poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, "herdeiro" da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus. E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro, o que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. adeusão." Torquato Neto

Depois das seis

O homem levantou-se da cama e foi trabalhar
Tirou seu pijama e foi trabalhar
Colocou sua roupa e foi trabalhar
E ao chegar no trabalho, cansado, pôs-se a descansar
O homem chegou do trabalho
E foi trabalhar
E cuidou de sua horta
E plantou seu lugar
E dormiu quase uma semana
E depois de uma procissão insana que em sua porta bateu
Sentiu a brisa lhe acariciar as pálpebras sôfregas, como os beijos que na juventude ofereceu
Ouviu um grito, era alguém que lhe chamava...
Dedicou sua atenção pois tanto barulho lhe alardeava,
e lá, depois da calçada, entremeado no breu
Descobriu que o homem do outro lado era o mesmo que do espelho
lhe dava adeus

Fabiano Martins

Filosofia barata

Céu
Não é mais azul
Rua
Não está mais limpa
Pessoa
Interrogação

O medo que se apresenta em seu olho
É a prerrogativa da preocupação
O medo de trazer para esse mundo uma criança
Faz cair por terra o desejo imaterial da esperança
E da propagação

Vejo apagar no seu corpo
A humanidade inteira
Que tipo de gente traz para esse mundo inocentes
A fim de corrompê-los
Ao final de mais corrupção
Que tipo de gente se faz contente e deseja e ambiciona e quer
Tanto
Que é incapaz de ver
Que nada fica depois da cremação...
(Nem mesmo DNA)

E depois de ouvir o avô dizer
E a mãe conceber
O que se sabe é apenas o que se há para saber:
O filho vai ter o mesmo destino
Morrer
Mas a morte é a presença mais vital da vida
É o futuro único que podemos prever
E mesmo assim pergunto:
Que pessoa quer morrer?

Mas se a rua não está mais limpa
E o mar está cheio de lixo
Se a pessoa não quer mais só comida, e separou-se dos outros bichos...
Pergunto: Por quê?

Se no desterro encontro o desterrado
E no lado nobre, quem está do outro lado
E aqui, onde fico parado,
Não dá pra ver a ambigüidade do futuro jogado
Assim, como quem nada quer
E do tempo, a esmo, sórdido
Sobra uma mordida
Sobra um propósito
Invisível

Não – na minha opinião este propósito
Não deve ser a vã propagação
Nem mesmo a confissão de que nada sabemos
Mas sim, a sequência da pergunta que já fiz
E escondida permanece sempre por um triz
Quase a ser descoberta
A pergunta verdadeira
Feita ao universo
A pergunta que liberta
e nos faz crescer
nos aproxima do divino e nos impede de morrer
a pergunta não é quando
a pergunta é
Por quê?


Fabiano Martins

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

É o homem a medida de todas as coisas?

Quando a terra ainda se formava
e quieta, rotunda
ia esfriando
é que de dentro de uma
caverna profunda
no abismo do
período pré-cambriano

os profetas iam se encontrar

Não existia deleite nem prova disso
Não existia nada senão, embora, os oficios
que eram entregues ao mar
Afim de que nele se desse a misturar ideal de um ser
para aquele planeta habitar

"Há de ter autonomia do corpo
Há de evoluir
Há de ter capacidade de transgredir
obstáculos tal qual o
vernáculo proferir"

Então foram formando,
ainda no mar pré-cambriano,
o embrião que iria desabrochar
dez milhões de anos depois
de o mar do deserto e dos cânions secar

Chamaram-lhe nada
pois nada havia para declarar
deram-lhe apenas pistas
que as pegadas de suas conquistas
viriam lhe revelar

O homem chamou a si mesmo de homem
e reivindicou tudo a seu nome
Viu que na terra teria aliados
E lançou-se sem sela nos mais rústicos cavalos

A caminho do futuro passou a olhar!

E inventou o que queria dizer inteligência
e transformou sabedoria em ciência
explicada pela matemática fria
De um outro sábio que ia
Pelo caminho aparecer
um ou dois milhões de anos depois
de outro "fundador da humanidade" morrer

Mas logo chegaram a um impasse
indissolúvel
Matar tornou-se então necessário
ao passo que também tornou-se útil

Pois poder e poderio se confundiram
E a natureza apagou-se em seu revés
o homem que é fruto das profecias mais antigas
caiu diante de seus próprios pés

Passaram a matar a si mesmos
os homens e os medos
Passaram por cima da natureza ao redor
com a matemática que era para explicar

Religião, depressão e ócio
tudo passou da medida do óbvio
e caiu em romaria de uma grande procissão
A paz agora era uma questão de religião

E nela deu-se ainda mais guerra
contradição
o homem matava ainda mais pela gratuita terra
e negava um pedaço de pão

A soberba atacou de repente
e sufocou o fato subsequente
àquela perseguição

Temerosos os algozes sucumbiram
dando lugar à Luz da razão
e por ela criticaram o sistema antigo
e criaram um novo
onde cada homem era lívido
e cada nome grandioso

E entenderam-se (os responsáveis por isso)
que nada havia mais a falar
Explicaram seu iluminismo presunçoso
que em capitalismo selvagem
veio a resultar

Com facas e tridentes
Armas de fogo
os homens vieram de novo a se enfrentar
uns sugeriram o socialismo
como forma de se renovar

Mas esqueceram que é preciso ter personalidade
E que só um par de tênis não basta
pra quem pode ter toda a cidade

E esqueceram de outra prerrogativa
De que existiria sempre alguém no poder
e dele caberia
pelo destino de um grupo responder

O certo é não haver poder de forma alguma
pois somos só poeira
Há de haver o dia
em que essa tecnologia
vai nos levar à luz verdadeira,

que tanto estamos longe de encontrar,
aqueles ofícios entregues ao mar
quando ainda não formados
eram os humanos
e feito célula única do período pré-cambriano,
nos oceanos viviam a flutuar


Fabiano Martins


"Decididamente não compreendo por que é mais glorioso bombardear de projécteis uma cidade do que assassinar alguém a machadadas." Fiodór Dostoiévski

Napoleão em Vilna (Rússia)

"Entre o grandioso e o ridículo, há apenas um detalhe"

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Fatos da vida

O apetite do mundo
Me quer para o almoço
Do alvoroço da infância
até o fundo do poço
Não posso me conter
Em tentar dizer
O me dá à cabeça
E, sem pressa, me rendo ao que
Menos interessa
Quem se importa com a fome dos outros?
Se não é em quem come que a fome dá
Quem se importa com quem tem medo?
Se tudo o que o mundo oferece é incerteza
Quem tem pressa de sentar-se à mesa?
Eu não.

Porque depois do jornal o apetite vai embora
E me dá uma vontade natural
De ir lá fora
E ali, bem perto
Compreendo o que não quero aceitar
Que vale mais o conforto do lar
Do que dar a mão a um irmão
Que vale mais o que vai na carteira
Do que procurar conversar a tarde inteira
Para saber quem aquela ou esta pessoa são

Em estado mais puro
Negligencio o futuro
Para aonde esse amontoado tecnológico vai nos levar
E peço:
Quero ir com vento
Pro lugar onde o vento achar melhor me levar
Derrama vida sobre mim
Não me deixe ser um poeta apenas do amor sexual
Permita-me no mínimo ser menos usual
Que isso
E abre teu sorriso, vida
E me deixa viver
Que nem tudo vai acontecer
Como eu, jovem ainda,
Achava que deveria ser

Primeiro o fato verdadeiro
O primeiro fato da vida que a criança vai conhecer
A morte
Depois o outro, a falta de sorte daquele ser
Que parado à porta do carro
Um sorriso deseja oferecer
Para ser taxado de sujo
Infância suja brasileira quer se mostrar para o mundo
Quer fazer arrastão
Quer mostrar que o Brasil esqueceu do Brasil
E só se preocupa com a imagem na televisão
E esta mesmo, trai o amante irracional
Ao exportar por dinheiro
Todo mal
E mais fácil ainda
Seria culpar as crianças e chamá-las de suja
E ignorar sua infância
E massacrar-lhe os sonhos
E destruir-lhes a esperança

A televisão vai trair o amante
No instante em que o dinheiro falar mais alto
E destronar o lugar da alma
Na hora de tomar a decisão
Usar uma certa razão que privilegiará a grana
E a imagem do arrastão
Correrá pelo mundo
Advinhe como
Pela televisão!
Por dinheiro, vamos denegrir o que é o Rio de Janeiro
Transformar em puteiro as casas das nossas mães
Exportar feito mercadoria
Cada menina que deste país é filha

Que o arrastão se dê no mar
Que é o seu lugar
Que a chuva lave o choro
De um filho que para casa não poderá voltar
Porque não tem casa
Porque neste mundo não tem nada para habitar

Mas, veja bem, o que quero mesmo falar
É que a natureza foi sucumbida
Pela soberba humana de se auto indulgenciar

E, entenda bem, não quero catar migalhas
Desejo que o avanço seja no coração
E não no concreto erguido alto, junto com a argamassa
E o aço, e o corpo daquele sub cidadão
Que construiu e ergueu por sua mão
A cidade
Aquele a quem esquecemos de cumprimentar
Por sua entrega
Por sua queda
Por sua incrível e inexorável felicidade.

Fabiano Martins

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Dormir

"A boca de espuma e a mão espalmada,
que contradição..." - pensou.
E continuou seu pensamento ébrio:
"Logo eu que nunca gostei de Chico Buarque!"
Mas havia confundido a autoria do poema,
que era de Vinícius de Moraes,
o Soneto da separação "De repente do riso fez-se o pranto..."
E levou adiante seu divagar à luz de parcas estrelas
escondidas entre o brilho do sol;
Pegou seu prozac, seu rivotril e um punhado de outros comprimidos
e levou à boca,
mastigou
uma,
duas,
três vezes
e engoliu!
Sentiu-se feliz por poder dormir
"Dormirei esta noite feliz"
Mas não era natal,
e o beco úmido fez-se brejo de sapos e rãs, é claro, interpretados por
ratos e baratas,
e quem fazia as vezes de esteira e cobertor eram os jornais velhos e os sacos de lixo.
Deu asas ao sonho.
Suas roupas eram particularmente boas para aquele fim, e o breu do sono induzido fez o mundo desabar em silêncio,
Dentro de suas pálpebras brilhavam pôses em prédios, mulheres e carros em elegante resumo de sua vida de excessos.
Pela noite, uma coruja soturna posou à sombra de um poste próximo
Luz amarela,
A coruja de olhos abertos, pousava sua atenção ao rato, e a presa secundária vislumbrava paz em seu bocejar.

Fabiano Martins