quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Acontecimento


O espaço dinâmico onde tudo acontece,
é por vezes sombrio, ermo, frio.
Por vezes, estio 
em que só se anoitece.
Aconteceu de ser assim.
E eu levanto todos os dias para ver em mim 
coisas que não me dão orgulho.
Não me sinto preso. 
Sinto como se sentisse a dor de todo o mundo. 
Algo muito próximo a uma lâmina fria.
Ao que minhas mãos se retraem num reflexo maquinal para evitar.
Minha cabeça, em cima dos ombros, pesa.
Penso muito sobre coisas práticas.
Ensinamentos transcendentais não alcanço nenhum.
Penso sobre a sujeira que insiste em se espalhar pela casa
e no jantar que deverá ser feito.
Penso nos consertos obrigatórios 
dos ventiladores, aparelhos de barbear, computadores e relógios.
E penso no pior. 
Numa discreta ânsia de querer ter com o mundo, sou capaz de tocar sua dor, 
mas fico mudo.
Apenas as coisas casuais têm seu lugar à luz da sala.
Guardei meus livros russos e os alemães.
Vejo novelas, falo besteiras.
É curioso ver como os outros se comportam, encontrando seus significados
e pequenos milagres à beira da varanda.
Eu sou guiado agora pela ação
e jogo água pelo chão,
e me preocupo com o ar suspenso, 
com partículas invisíveis,
com palavras improváveis
e ações possíveis.


Fabiano Martins

Pé ante pé

 

Parecia se misturar com as partículas de ar 
e meio que desaparecia.
Era como se existisse ao mesmo tempo 
em vários lugares e vivesse o mesmo momento - 
o que sugeria um tipo de sorte que não precisa senão do caos.
Era como se não houvesse diferença entre morte e transcendência.
Como se não quiséssemos viver de acordo com a ciência,
e tal se imaginássemos poesia das piores vilanias 
- o que de fato fazemos.
Era o olhar tranquilo daquela criança que passeava sorrindo, 
resumindo naquele instante (sem ter consciência alguma)
a história ancestral 
dos habitantes daquele planeta.
Pé ante pé.


Fabiano Martins.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Pensando melhor


Preciso ficar em silêncio
Sem som de palavra,
sem música,
sem ruídos de pés sobre assoalhos, 
do friccionar de pneus no asfalto, 
sem o barulho do vento nas folhas  
ou da goteira intermitente de um vazamento de pia
Preciso estar só.
Completamente isolado
dentro de um quadro negro. 
Nele, mergulhado. 
Para perceber que de olhos fechados 
a visão abarca mais. 
Preciso estar solitário 
no microcosmo de mim mesmo 
por alguns segundos todos os dias 
para alcançar alguma reflexão que faça sentido. 
Algum partido de originalidade.
Como um sonho que se apresenta contrário ao que se faria consciente.
Para ter mais clareza de todos que moram em mim, daquilo que sentem. 
Para pensar melhor.


Fabiano Martins.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Perdão

Há pouco para se ter certeza na vida. 
Tudo é estratégia evolutiva. 
Da beleza ao amor, 
da auto-sabotagem à crença divina.
Nada é certo,
nem a razão, nem a endorfina.
Tudo é inconstante matéria a deixar de ser.
E se tudo é assim tão efêmero,
criado para não durar,
por que será que é tão difícil 
perdoar?


Fabiano Martins

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Desgaste

Há uma sombra
vaga
entre ondas
raras
que se erguem diante de mim.

Chuvas torrenciais
sobre campos e rios 

onde ninguém as pode sentir.

Energia desperdiçada
toca o chão,
cria fumaça.

Trovão são palavras
quando tudo que sobra é o dia 
e tudo que falta vira poesia.


Há o sentido original que se distancia 
e um outro que de forma lenta se apropria 
na continuação de tudo que sempre foi.
A confirmação do que é.


Fabiano Martins

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Parecer

Sei que não há nada que me ligue ao resto da humanidade.
No fundo de cada olhar pode haver beleza,
E também pode haver maldade.
Ainda assim, tendo a acreditar no futuro, 
a tentar buscar felicidade nas coisas que recebo do mundo 
Sinto-me livre para isso. 
E de fato, sentir é ser.
Experimento essa liberdade que me incita a um certo cinismo.
Há pessoas que não pensam sobre a natureza da realidade, 
sobre as mil formas de aniquilação que o universo indiferente planeja. 
Não se interessam por saber sobre os espectros de radiação que vemos,
sobre a idade dos planetas
e aquilo que vai na filosofia.
Não me sinto parte de um todo inteligente, 
mas vivo para negar o que não reconheço.
Não querer tomar parte na violência 
e com violência o fazer.
É, contra todos os argumentos em contrário, dizer:
Eu não pareço com você.
Eu não pareço com você.


Fabiano Martins

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Brevidade

Invento com amor fantasias para nossa rotina.
Diariamente,
sou até onde posso ser.
Mais comumente, sou o mais provável
dos seres,
que fala, caminha, defeca
e ama passar os dias 
inventando pequenas histórias
e compondo poemas singelos,
com a sinceridade que me permite 
a primeira maturidade,
na qual ainda se podem ouvir
ecos da juventude e da infância 
e ter com certa nitidez a visão 
das pontes e dos contructos.
Poética
de uma carne, que invariavelmente irá apodrecer,
para outra carne que também irá,
por mentes capazes de se unir
e se amar
por um breve momento.


Fabiano Martins

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Natural

"Oi, chuva" - disse a gota doce e cristalina de água de rio calmo.
Quando evaporada se juntou a outras gotas
mais exasperadas,
que antes eram salgadas e sujas 
mas que agora, filtradas, 
amontoavam-se umas dentro das outras 
num lago sublimado, voador
sobre as nossas cabeças.
"Oi, chuva" - disse eu, rapaz de boa índole,
ao me deparar com a primeira gota ácida
que me atingiu no fim da tarde.
Eu preferi ficar ali
quase a tocar a teia do real.
Eu senti o frio carnal e 
a vontade de ser como a chuva.


Fabiano Martins