sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Herança

Algo em mim contém uma parte do que te formou.
Fui meio pelo qual a mensagem passou.
Fui eu mesmo querendo ser feliz,
e, perseguindo na inconstância 
que nos permitem os sentidos,
reconhecer um pouco de prazer na vida.
Por isso quis ter filhos.
Algo em mim quis assim.
Estou surpreso com as palavras 
doces as quais atribuo significados profundos.
Inadequado. Eu sei que ainda é raso o compreender infantil.
Mas me convenço de tudo que quero 
e da janela te mostro a cidade.
Cada vez mais pesam os braços. 
Cada vez mais o mundo pesa.
Eu não sabia como seria
mas tinha uma ideia do que esperar.
Crescer é querer e nunca encontrar.
Envelhecer é ter perante si seus ideais 
e assistir em um lugar confortável a vida que te aconteceu.
É sofrer um tanto menos pelas coisas que abandonou
e saber que tudo foi rápido demais.
Um segundo após o outro que trouxe até aqui
- foi rápido demais -
um minuto após o outro e já! 
O quanto vivo feliz só em mim tem resposta.
Algo meu, que eu fiz e dediquei muito tempo na preservação.
Impossível prender o tempo,
mas possível será reconhecer algo bom.


Fabiano Martins

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Ato contínuo

Na impossibilidade de fazer qualquer outra coisa,
começamos a escrever. 
Começamos na intenção de investigar algo que sentimos,
trazer nome a essas coisas que nos dá a vida.
E entendemos que devemos transgredir as regras da língua
para poder tocar (em parte)
a imaterialidade das matizes sentimentais.
Eu gostaria de encontrar minha paz,
o fim das ideias que se interpõem maquinalmente
de forma negativa.
Eu gostaria de poder reter algo verdadeiro em algumas linhas,
e, na impossibilidade disso acontecer,
continuo a escrever.


Fabiano Martins

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Verdade

Teria de haver algo realmente puro
cuja pureza se pudesse comprovar.
Onde fosse possível deitar para esperar o tempo passar.
Algo em que se pudesse confiar,
como são os olhos dos meus filhos.
Algo para olhar,
com um poder restaurador profundo,
dos quais evaporam coisas etéreas.
Algo que flui em minha direção pela matéria
a me impulsionar 
para frente.


Fabiano Martins

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Fazendo azul

Como alguém que abre os seus braços ao novo 
e aceita cada coisa que o mundo traz,
sem desejar mais,
sendo por isso abastado,
e a não precisar de nada além.

A felicidade só é real assim:
aos olhos de quem a vê.

Observo o fogo com o mesmo antigo encantamento.
Vejo-o queimar em seu eterno momento
e sua luz atravessar o firmamento.
Lento atravessar de luz
que se mistura com o ar
fazendo azul.


Fabiano Martins

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Fragmento 1

Acredito que existo 
e tudo quanto aquilo que me falam
escuto.
Acredito no que vejo e permuto horas em troca 
de comida.
Chamo essa convicação de vida.
Eu me movo mesmo sem querer -
da terra vem um cheiro úmido, 
água brota da bica.
O sol é uma certeza, a manhã emociona de tanta de beleza.
As paixões se afloram quando a noite vem, as crianças nascem
e as cantigas fazem bem

Eu me deito ao fim de tudo isso.
O cansaço se abate sobre o corpo.
Exausto, entrego-me aos pensamentos mais profundos.
Reflito.
Perco a condução dos fatos.
Vazão de uma outra consciência.
Adormeço com prazer e me esqueço até voltar a lembrar.
Pelo período de algumas horas não posso afirmar onde estive,
nem o que pensei.
Apenas me sinto revigorado
com vontade de fazer.

Pergunto-me se viver é também querer ter do mistério 
a desculpa para nossa performance ruim.
Como quando falhamos no altruísmo; e mesmo o contrário,
quando somos altruístas e nos imaginamos tão alto, 
enlevados pelo sentimento de doação,
que quase podemos tocar as nuvens.

Eu não quero vagar sem perceber
e trocar horas por comida
e levar sonhos com a barriga.
Eu não quero me dispersar em (sub)versões de mim.



Fabiano Martins

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Voz

É como uma voz falando comigo.
Pede-me que execute as coisas,
como se não fosse eu,
ou como se precisasse de mim para executar essas coisas que me pede.
Não é como um sonho.
Na verdade, é a mais dura realidade.
É uma voz que me incomoda 
que me acorda
e me alerta
e me distrai.
Incontrolável.
Não vem pelos ouvidos,
é processo interno.
Voz talvez não seja,
mas juro que posso ouvi-la.
ou talvez vê-la,
considerando todas as possibilidades,
conjuntando e desconfigurando 
como criatividade.


Fabiano Martins

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Do início ao fim

Alma perdida no mundo,
entre jogos baseados no azar,
não deixe de crer em nenhum segundo
na energia por trás do olhar.
Não deixe que a dor comprima
teu modo original de querer se salvar.
Tente sempre se lembrar:
a morte nos torna irmãos em vida.
Não esqueça da alegria que te anima
entre tantos becos sem saída,
entre tanta coisa que termina,
entre tanto eterno recomeçar.


Fabiano Martins

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Exercício

Eu queria poder, 
saber aprender,
e não querer sequer merecer
ser
coisa que não devo
ser.
Esquecer, desmerecer, anteceder e desvanecer meu querer 
que é de ter e ler você,
poder beber,
se der,
se houver de lhe aprouver, 
Jagermeister,
e, se isso fizer transcender
já depois do anoitecer,
e, no fim, aceder
ao prazer
de mais uma vez ver
amanhecer


Fabiano Martins

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Homem morcego

Sou indiferente a você
Independente do seu querer
Sou matéria iterada sofisticada
Esticada, recheada, inflada
Estico dedos longos sobre teclados negros
Percebo tudo quanto posso e quero
Ensaio, aventuro e ensejo
Percebo nas coisas que pude 
razões que por vezes me esqueço
Construo algo constructo
Morcego Homem Morcego


Fabiano Martins

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Inefável

Eu nem percebo que já não sou o último de mim.
Eu nem sei (que de mim) não fui eu quem quis ser.
Estive andando pela rua pensando.
Estive fazendo planos.
Sem entender que de mim esses planos nasciam,
mas que não eram meus.
Eram livres.
Coisas naturais.
Eram, de fato, casuais.
E entre tantos planos,
estive, sim, participando da vida.
Mas não me apercebi que a reproduzia.

Caminhei - mas foi algo caminhou por mim.
Eu achava que bebia e que brigava e que comia.
Enquanto algo era que me queria assim: levando meus dedos ao teclado.
Algo invisível dependurado.
Algo fatídico e inevitável.
Algo verídico e inefável.
Algo político, moral, natural e inexpugnável.
Algo que é por mim.
Destino.
Já não sou último. 
Pouco posso ver. 
Já não sou o último - algo me leva a crer. 


Fabiano Martins