Posto que sou sulamericano
O que fica?
O que fica do ser humano
Posto que é sul americano
Latino
Moreno, de olhos negros
Cabelos negros
O que fica do eu que vejo do espelho da televisão
Quando de repente nos chamam a todos de chicos
E abrem a boca para falar espanhol
Posto que não sou da Espanha
E não falo espanhol
Que não sou europeu
Nem branco
Nem norte americano
O que sou eu?
E o que posso desejar
Posto que sou do sul
Do trópico
De uma língua assaz reinventada
O que posso constatar?
Se gosto de futebol jogado com os pés
Se amo o andar do malandro
De viés
Se ouço samba
Se amo ir à praia, o que chega a ser banal
Dada a proximidade
Se acho que o prato bom
Tem que ter feijão
Se não prescindo de arroz
Qual será o meu lugar?
Posto que sou sul americano
E falo português
E falo mais de uma só vez
E penso
E tenho vontade
E não sei o que é pasta de amendoim
E nem me interesso por siglas de letras que não constam no meu alfabeto
E não uso camisetas brancas com um I maiúsculo e um coração
O que sobra sobre o meu conhecimento, então?
Posto que sou sulamericano
E conheci gente pobre,
E mesmo na minha casa, que nunca foi pobre,
Conheci gente simples
De economizar a passagem do ônibus
De ir à missa
De rezar terminando ao falar amém
O que sobra de mim mesmo
Neste filme sobre ninguém
Neste desdém de lá de fora?
Será que sou étnico?
O que será que sou?
Será que sou profético
Ao tentar esclarecer sem pudor
De parecer exagerado
Quem será que está do meu lado?
Porque não me vejo na novela
Nem mesmo uma parte de mim
Se vê ali
Porque não me vejo no palanque
De terno e gravata a saudar mais um Pinochet
Com sorriso entre os dentes
Porque não sou quem anda pelas avenidas do Leblon
Não tenho casa na Gávea
Nem freqüento a Viera Souto
Se não estou nos Jardins,
Nem passeio pela Oscar Freire
Nem vejo lógica em negar um pedaço de pão
Em nem em escorraçar a empregada que esconde um pedaço de pão
Que lugar será o meu neste mundo de lá fora?
Porque penso antes de gastar cinqüenta reais
Porque sou passante de blitz policiais
Habituée dos lotados hospitais
Porque sou torto,
Não sou alto e cheio de defeitos
A que será que tenho direito?
Se até pagando pelos serviços me exigem documentos
Se até pagando para embarcar no avião
O agente federal do abroad diz que não
Mas eis que o político anuncia
Vamos para o esporte ser moradia
E querem que eu vá para rua comemorar
Sou um sul-americano, e a olimpíada tenho o prazer de sediar
Isso é piada
E ver o prefeito falar do quanto se gasta com o lixo
Isso é piada
E ter uma cidade para música em frente a um hospital sem nada
Isso é uma grande piada!
Querem me fazer sentir orgulhoso do que os que nos criticam julgam ser o certo
Querem nos fazer jogar o jogo viciado em beneficiar os donos do dinheiro
Ah, os estudiosos, os virtuosos europeus vão nos criticar!
Hão de levantar em sua casa com frio
Para acender o pavio
De uma vergonha secular
O pretenso ar superior que herdaram
Dos sifilíticos que nos catequisaram!
De quem os engravatados
Burocratas
E burgueses meio-índios
Nunca vão conseguir se apartar
Porque mesmo lambendo os pés de quem nos dita ser o Direito
Nunca vão conseguir se livrar do atestado latino
Papel que é revelado pelo sotaque da boca
Pela pele que o protetor solar não consegue proteger
Desnivelado estigma de ser terceiro mundo...
Eu me guardo a um preceito:
O pensamento
O início e o fim, que se dá em minha mente
O pensamento que liberta e mostra a face já sem dente
Que me querem pra comemorar
Olimpíada é piada
Porque ninguém dá dinheiro pra benfeitoria sem querer nada
Ou então, economiza este bilhão
E gera emprego pra quem precisa
Economiza o que me levam
Todo o suor da minha camisa
Economiza ao invés de criar subterfúgios pra poder roubar
E fazer parecer festa
Para enganar e enganar
Aqueles que olham sem ver
O que por trás desta festa está
Fabiano Martins
Rio, 7 de dezembro de 2009.
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MA-RA-VI-LHO-SA! Concordo com a essência do que vc disse. Bela poesia! Não pelo formato, mas pelos valores.
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