quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Insônia

A alma coberta por absurdos negros
Ida na noite em direção à janela
Aberta do desejo
Todo delírio da cura tua pra dor antiga
mas nada atenua e só fadiga
a alma que deixo,
que abandono
me irrita
nunca perfeito, sou nunca perfeito
sou só no seu peito, madrugada
deixa que a lua abençoe os deuses,
minha amada
somos nada, por nada
sou boca, dor armada
armas de fogo apontadas pro caos
que mais dizer que não
Adeus...
Nesse meio azul perco-me de meu Deus
Peço pra me acharem na folia
ao final da madrugada
que se extinguia
como o fogo em meu coração
na noite que se ia em vão
Deixo-me perdido, nu, despido
confidencio à livre penitência
como que incorporando por ato de auxílio
perco-me na confidência
O amor da juventude que te dei
À sorte, pura sorte, me joguei
Teus braços, meu insensato sabor
Melhor dizer não ao amor
E continuar à noite, na morte nua
De cada amanhã
Tentar manter a lembrança, mais nada
Pra não morrer de amor
Hei de esquecer a coisa amada

Fabiano Martins

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Os Campos

Segundo
O das Quinas


Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Mão

Ah! minha mão que não quer machucar...
o que há de errado, mão,
por que não te pões de punho cerrado
a querer trucidar?
Pois se te espero mover,
apenas escreves,
digitas, sei lá...
Por que não estrangulas, esganas, matas
ou feres para que assim eu possa
Ganhar?
Oh, minha mão pacífica
ocupada em acariciar
Por que não feres, machucas, matas
para que assim eu consiga um lugar?
Por que não te ocupas em montar armas,
em vestir luvas,
ou usar facas?
Por que preferes o friso da pena
do que a sentença que executa
o fim da vida de outrem?
Por que não te pões a pingar cicuta
ao invés de ter em permuta
a honra de nada lograr?

Pois à mão
não soma nada
De unhas cortadas
não pode arranhar
E por ser estreito o caminho em seus meios
quer ter por recheio
a maciez de um seio para apertar
Fazer curar a lágrima
que escorre e
recorre em querer magoar
Alisar cochas morenas, lábios rosados
e outras mãos que lhe ofertem o pouco
que em tudo há de ficar.


Fabiano Martins.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Resíduo

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade.

Sirena

Ontem, o sol tardio das cinco horas brilhou em mim
Minha cabeça caída de lado, voltava aos iguais fatos do passado
vamos caminhar, disse
e comigo mesmo fui
e mesmo comigo, dancei
e dancei

e só de madrugada acordei
estando por aí quieto e esperançoso da vida
via teus olhos de outrora na minha cortina
na minha cortiça
Teus olhos sós
Em pensar em nós: de vira-latas a atores
da aristocracia aos estivadores
no cais, nos pais, no país
e os legados da nossa juventude
vinham dar bandeira
a outros que sem pátria
repatriavam-se
por assim dizer
em mim e em você
somos dois
e dois apartados seres
somos dos
sonhos
e dos bendizeres
Estando apenas um pouco distantes
das lendas, sirenas
dos dias


Fabiano Martins